sábado, 22 de outubro de 2011

Mão na massa (ou na lama)

Quase sete meses no Japão, e já estou mais ou menos acostumado. Já tive oportunidade de conhecer vários lugares e ter experiências que levarei, com certeza, até o fim da vida.

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Na última postagem, comentei sobre a cidade de Ishinomaki. Estava indo para lá pela primeira vez, em Junho, após quase 3 meses do Grande Desastre da Costa Leste do Japão. As cenas eram chocantes: carros em cima de casas, casas tombadas desde a base, prédios pela metade, entre outras coisas. Lama do mar ainda cobria ruas e terrenos e, em algumas partes, ainda haviam grupos de busca por corpos: naquelas regiões, só era permitida a entrada das forças-tarefa. 

Carro sobre o telhado de um sobrado, na proximidade da costa.
Naquela missão, nos limitamos a limpar o lodo que cobria um centro comunitário local. Devido à presença de indústrias químicas na região portuária, junto com a lama carregada pela tsunami veio também uma grande carga de óleo. Passamos um fim de semana inteiro para remover aquele lodo oleoso e limpar o terreno, que também estava cheio de destroços de casas ao redor.

Aliás, talvez "destroços" não seja uma palavra muito adequada neste caso. Por várias vezes, encontramos objetos no meio da lama, carregados de outras casas, que - embora chamemos de destroços - são talvez a única memória existente de um passado que jamais voltará. Encontramos passaportes, roupas, álbuns de fotos, revistas em quadrinhos e vários brinquedos. De quem eram? Quem eram aquelas pessoas felizes na foto, na formatura do seu filhinho de 10 anos? Será que sobreviveram? Será que sofreram muito? São tantas as perguntas que martelam em nosso cérebro nesses momentos, e muitas vezes derramar uma lágrima é algo que ocorre quase que naturalmente.

Destroço? 
Quase sempre, o silêncio era a única resposta.

Ishinomaki foi a cidade com mais fatalidades: cerca de 3100 mortos e 2700 desaparecidos, na época em que fomos para lá. Frente a tanta destruição, é inevitável se sentir impotente; e ver as pessoas ao nosso redor correndo, reconstruindo suas casas e reestruturando suas vidas era o combustível que nos fazia trabalhar cada vez mais, embora cansados, para fazer pelo menos um pouco por eles.

Mesmo assim, era inevitável se sentir inútil no fim do dia.

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Por isso, participei como voluntário duas outras vezes, aproveitando as férias de Verão na Universidade - o que não foi exatamente a coisa mais inteligente a se fazer: o Verão aqui no Japão é exaustivamente quente. E úmido. E cheio de insetos. Mas era o tempo que eu tinha disponível, e era o tempo que eles precisavam de ajuda.

Voltei a Ishinomaki em meados de agosto, para - dessa vez - uma semana inteira de trabalho. Foi muito bom voltar a Ishinomaki e notar a diferença na cidade! As coisas já estavam, pouco a pouco, se ajeitando, e os serviços começavam a funcionar regularmente.

Nos primeiros dias, fomos recrutados para atuar em uma ilha pesqueira - também conhecida como Ilha dos Gatos, por existirem vários gatos que vivem no meio da natureza. É um lugar de beleza indescritível! Fica a mais ou menos uma hora de barco a partir do porto de Ishinomaki. Sua população é bem pequena: cerca de 60 casas apenas. Ficamos em uma pousada para turistas que, no momento, servia de base para grupos voluntários.


Ajudamos a limpar a costa, recolher redes de pesca e bóias que foram enroladas e soterradas sob a areia do mar. De frente para o mar havia uma casa recém construída, já com os acabamentos prontos - à exceção dos azulejos da sala de banho. A tsunami devastou tudo, tornando a casa inabitável. Porém, muitos dos materiais ainda podem ser reaproveitados - como o madeiramento do piso. Ajudamos a desmontar todo o piso dessa casa e separar as madeiras para uso posterior. (Aliás, o modo como as casas são construídas ali é fantástico! Se não me engano, haviam 4 camadas de piso, sendo uma delas recheada com isolante térmico. Desparafusar e despregar todas as peças de madeira deu um trabalho danado!)

Nos dias seguintes (um fim de semana), foi realizado o Festival de Ishinomaki. Foi uma das experiências mais impressionantes da minha vida. Talvez você se pergunte: "Fazer um festival, mesmo com tudo que aconteceu? Como assim?"

No Japão, os Festivais de Verão (Natsu Matsuri, 夏祭り) são super comuns. Normalmente é um momento de celebração, de alegria. No caso de Ishinomaki, o festival foi dividido em dois dias: o primeiro, à noite, foi uma celebração de despedida. Vários grupos de voluntários se uniram para preparar cerca de 10.000 lamparinas de papel, de várias cores, com uma vela dentro. Essas lamparinas se chamam Tourou. Fizemos 10.000, uma representando uma vítima do Desastre - não apenas em Ishinomaki, mas em toda região nordeste. Com ajuda dos pescadores, nos montamos em barcos e acendemos e soltamos uma por uma no leito do rio, à noite. O mesmo rio por onde a tsunami subiu e adentrou o continente.

Tourou

Fluindo. Algumas lamparinas afundavam no meio da corrente, outras prosseguiam o caminho até perdermos de vista. E assim é a vida, não é?

Existem tantos, mas tantos, significados por trás desse gesto. Enquanto lançávamos as lamparinas ao mar, sacerdotes entoavam cânticos e orações pelas vítimas. Alguns parentes estavam presentes e escreveram os nomes de seus entes perdidos nas lamparinas. Às vezes pegávamos uma dessas. Acendiamos, liamos o nome em voz alta, e desejávamos "boa viagem". No barco, o clima era de silêncio e contemplação. Um silêncio natural, daqueles que não precisamos forçar, e que só era quebrado quando outro time vinha de jangada trazer mais lamparinas para lançarmos. Fora de nós, o silêncio; dentro, um vazio imenso.


No dia seguinte, a mensagem era: "Vamo que vamo!" Na noite de domingo, demos adeus às vítimas no festival das lamparinas; na segunda-feira, era a vez de reforçar a mensagem de reconstrução. Várias barracas foram montadas nas praças principais, com apresentações musicais e venda de alimentos e artesanato para arrecadar mais fundos para a reconstrução da cidade. Nossa barraca ficou responsável por divulgar as atividades do grupo de voluntários da Nippon Zaidan, o Gakuvo, e por entreter as crianças! Fizemos várias brincadeiras, e foi realmente gratificante ver o sorriso abrindo nos rostos dos pais e avós que nos observavam, e às vezes até brincavam junto com as crianças.

Preparando o kingyo sukui (pescaria com rede fina)

Orquestra de alunas do Fundamental II de uma das escolas locais

Apresentação de dança típica com crianças de Ishinomaki
Mas nada das atividades do festival foram mais importantes e significativas que o Mikoshi. Mikoshi é um tipo de palanquim, no qual se instala um pequeno santuário Xintoísta. Voluntários carregam o enorme palanquim nos ombros, pulando e chacoalhando-o ao redor de um percurso pré-definido. Esse Mikoshi foi construído inteiramente a partir de escombros da Tsunami e, portanto, carrega ainda mais forte a imagem de reconstrução a partir da tragédia.

Mikoshi feito a partir de escombros.

Equipe do Gakuvo!

Mikoshi durante a procissão.
Muitas vezes, ouço críticas a respeito da religião japonesa, o Xintoísmo, por ser algo amorfo, pagão, cheio de deuses e sem o menor sentido. As pessoas às vezes rezam num templo Xintô e nem sabem quem é que está divinizado ali. Mas, em momentos como esse do Mikoshi, toda e qualquer crítica cai abaixo. É impossível não se sentir compelido a entrar no meio da multidão e gritar, e pular, e chorar com todos eles. Eu olhava ao meu redor e via senhorinhas chorando e sorrindo ao mesmo tempo, pais com os filhos nas costas pulando, gritando os gritos de incentivo ("Oisha! Sor'ya!"), e com lágrimas escorrendo pelo rosto. Naquele momento, todos éramos uma coisa só: não havia mais vítimas, não havia mais voluntários, não havia mais japoneses ou estrangeiros; não havia mais homens ou deuses. Havia apenas o que havia ali, ao redor daquele Omikoshi, naquela comunhão única. Jamais esquecerei.

Depois do fim da procissão, houve uma exibição de fogos de artifício (Hanabi 花火 - flores de fogo), e voltamos para nosso alojamento. Trabalhamos ainda no dia seguinte pela manhã cedo recolhendo o lixo do festival, limpando as ruas (junto com crianças de escolas locais). Aliás, vale comentar que praticamente não havia lixo algum nas ruas! O senso de educação do japonês é incrível.

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Antes de voltar para Tokyo, fomos a um sítio de pesca trabalhar mais um pouco. Fizemos sacos de areia para impedir que, na subida da maré, escombros fossem carregados para a cidade. Ishinomaki foi deslocada mais de um metro para dentro do mar e, como resultado disso, quando as marés sobem a água invade a pista beira-mar. Enquanto isso, as meninas iam preparando colares de conchas para o cultivo de ostras - principal atrativo da região. Ovas de ostras são depositadas em conchas e deixadas amadurecer por um ano, quando são - então - transferidas para outro tipo de conchas maiores. Ali, ficam mais pelo menos um ano até atingirem o ponto de colheita para comércio e alimentação.

Esses pontos pretos são bóias, sob as quais estão atadas vários colares de conchas com ovas de ostras.

Colares de conchas com ovas das ostras.

Ovas das ostras, em destaque. Apenas 10% das ovas depositadas costumam sobreviver.

Quando ocorreu a tsunami, todas as conchas, ostras, cordas e bóias foram carregadas terra adentro. Até hoje, aliás, é possível ver bóias e cordas penduradas nas árvores, no alto dos penhascos a beira-mar. Os pescadores ficaram extremamente desiludidos e desesperados, por perderem anos de trabalho. Ainda, os armazéns foram também devastados, de modo que as ovas de ostras também pareciam ter sido perdidas! Sem as ovas, era impossível recomeçar. Por sorte, durante uma das missões anteriores à nossa, eles encontraram uma caixa com ovas das ostras e puderam, então recomeçar o longo processo de cultivo. Parte dos colares de conchas foram recuperados e voltaram ao mar, mas uma boa quantidade deles perdeu totalmente a utilidade. O prejuízo para a indústria pesqueira local foi tremendo mas, mesmo assim, eles não desistiram e estão recomeçando tudo de novo. Já nos convidaram para voltar lá daqui 2 anos e comer ostras deliciosas! :))

Fizemos bastante coisa, mas mesmo assim ainda tem muito a ser feito.

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Por isso me voluntariei mais uma vez, para mais uma missão de uma semana em Setembro! Dessa vez, fomos a Karakuwa. Karakuwa também é uma cidade incrivelmente linda, como toda a região de Miyagi. Aliás, um dos poetas mais famosos do Japão, Bassho, escreveu uma vez que ali é a região mais bonita de todo o país. Eu não duvidaria.

Passamos nossa primeira noite em Karakuwa numa casa semi-destruída pelo tsunami: não tinha algumas das paredes, nem janelas, nem portas e muito menos luz elétrica. Chegamos lá por volta das 4h da madrugada, após 15 horas de viagem a partir de Tokyo. Em condições normais, a viagem levaria 9h - mas viajamos exatamente no dia que um dos tufões da estação chegou na terra firme. Saímos de Tokyo em meio à forte ventania e chuva, que pegamos em boa parte do caminho (o tufão seguiu na mesma direção que nós). Aliás, devido às más condições, a estrada expressa foi fechada, desviando todo o tráfego para pistas locais - afogando o trânsito. No meio daquela confusão toda, acabamos tendo o azar de colidir com um caminhão, e perdendo ainda mais tempo da viagem. Da minha janela, pude observar com certa dó o policial tentando tomar anotações da ocorrência enquanto tentava manter o equilíbrio sob os fortes ventos do tufão. É, profissão complicada.

Durante o primeiro dia, dormimos. Dormimos e mudamos para o novo alojamento, uma linda casa de três andares, que foi também lavada pelo tsunami. Equipes antes da nossa limparam a casa e a deixaram usável de novo, e os donos resolveram ceder-la para que nossas missões pudessem tem um local de alojamento.

O trabalho dessa vez foi bem mais pesado do que o que eu estava acostumado. Durante dois dias, separamos entulhos (madeira, vidro, cerâmica, concreto) de terrenos "limpos" (que já haviam sido previamente limpos por máquinas escavadeiras); e durante dois dias fomos preparar âncoras de pedras para uso dos pescadores. Preparamos e carregamos sacos de 60kg, centenas deles. 

Caminhão recolhendo as âncoras de pedra. No primeiro dia, tinha a máquina para ajudar, mas no segundo...
No segundo dia, enchemos os sacos e os carregamos no braço. Kung fu puro!

Âncoras de pedra, depois de prontas.

Enquanto escrevo isso, sinto umas contrações involuntárias nas costas - provavelmente lembranças das dores lombares depois de escavar o dia todo.

Foi um trabalho muito bom. Parece idiota, mas trabalho pesado dá sensação de trabalho árduo, recompensador. Uma das coisas que mais me impressionou nessa missão foi ter conversado com um dos pescadores durante o primeiro dia de preparo dos sacos de pedra. Quer dizer, não foi exatamente uma conversa, mas foi muito bom. Era um senhor de 60 e tantos anos. Veio me perguntar de onde eu era e, quando respondi, ele abriu um sorriso e começou a conversar comigo. Veja bem, japonês não é um idioma em que eu possa dizer que me comunico muito eficientemente (ainda). O senhor é do interior do interior (uma cidadezinha de pouco mais de 3000 habitantes, numa das regiões menos populosas do Japão) e, por consequência, tem um sotaque bem carregado. Além disso, é um pescador; e todos sabem que pescadores têm quase que um dialeto próprio. Some a isso o fato de ele ser um senhor de idade: segundo meus amigos, "jiichans" têm uma capacidade incrível de falar enroladamente. Bem, talvez dê pra ter uma noção de que a conversa foi mais um monólogo do que um diálogo. 

Em linhas gerais (ou na medida em que pude entender), ele falava o quanto eu era abençoado por ser brasileiro. O Brasil é um país lindo, onde não há terremotos, não há tsunamis, e as pessoas não precisam constantemente reconstruir todas suas vidas do zero, como ele estava ali fazendo naquele momento. "Os japoneses são muito inteligentes," disse ele. "Souberam enxergar isso no Brasil e, por isso, muitos foram para lá. Foram para lá e nunca mais voltaram, porque perceberam o quanto o Brasil é um país rico e maravilhoso." Ele me olhava nos olhos e dizia que estava feliz por eu ter ido lá, praquela pequena cidadezinha, ajudá-los. E disse para eu olhar bem ao meu redor, e guardar bem tudo aquilo que eu visse, para reconhecer o quanto meu país é abençoado. :)))

E eu não poderia concordar mais!



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Bem, por hoje é só. Para quem tiver vontade de participar do programa de voluntariado, fique de olho nos updates da Nikkey Youth, e sigam a página deles no Facebook! :)

São pessoas sérias e comprometidas no que fazem. Vale realmente a pena se alistar. Escrevi um post imenso, mas não dá pra passar nem 1/10 de tudo aquilo que eu poderia falar sobre as missões e sobre como elas mudaram minha vida. Só experimentando para saber.

Termino o post com algumas fotos da maravilha natural de Tohoku :)

Até!







Para mais fotos das missões, veja meu álbum do Flickr, e os álbuns do Facebook do Batch 6, Batch 11 e Batch 15! :)